Review – O deslocado mundo de Majin Tantei Nougami Neuro

Porque Neuro prova que nem só de Death Note viveu o gênero alternativo da Shounen Jump.

Se hoje uma pessoa pode mudar os rumos atuais da Shounen Jump, essa pessoa com certeza é Yuusei Matsui. Digo mais: ao lado da dupla Ohba e Obata, Matsui é o autor que tenta fugir da monotonia dos gêneros da revista e explora uma parcela de público carente e que já se mostrou existente dentro da revista da semanal Shueisha. Claro que aqui a ideia não é desmerecer nenhum Eiichiro Oda ou Masashi Kishimoto – sucessos absolutos com seus One Piece e Naruto, respectivamente – e sim que a linha alternativa é um dos diferenciais dentro de uma publicação onde o “bom e velho” battle shounen ainda comanda o selo.

Mas quem é Matsui? O que ele realmente fez de tão importante dentro da Shounen Jump? Talvez ele não tenha uma influência tão grande internacionalmente como um Death Note, mas sem dúvidas Majin Tantei Nougami Neuro foi um dos títulos diferenciais da revista entre os anos em que foi publicada. Com um traço diferente do habitual, personagens com um grande carisma e um enredo totalmente deslocado do mundo “fechado” da Jump, conheça um dos mangás que você com certeza deveria ler na sua vida.

A história

O mundo dos demônios – o chamado Makai na mitologia japonesa – é o lar das mais diversas criaturas, espíritos, monstros e tudo que você possa imaginar. Obviamente que em um lugar assim, mistérios, mortes e muitos crimes acontecem “diariamente”. E é nesse lugar que se encontra Nougami Neuro, o demônio famoso por devorar – literalmente – os casos sobrenaturais e recorrentes no Makai. Porém ele quer mais. Ao se deparar com um mundo onde ele já teve o poder de absorver todos os possíveis e recorrentes crimes, Neuro decide fazer uma visitinha para um novo mundo, um mundo em que demônios são as menores preocupações: o mundo dos humanos.

Sendo assim, Neuro assume uma forma humana totalmente “não-chamativa” e decide partir em busca da sua jornada do “maior crime” que pudesse saciar a sua fome e cobrir o vazio que o mundo dos demônios não poderia mais satisfazê-lo. As energias negativas dos homens, somados a pecados, luxúria, avareza e todos os sentimentos ruins, deixam Neuro cada vez mais empolgado e disposto a qualquer coisa para conseguir seu objetivo. Pensando nisso, Neuro é “atraído” até uma jovem estudante chamada Yako Katsuragi, uma jovem que acaba de perder seu pai e que terá sua vida totalmente revirada ao ter seu caso solucionado com a ajuda do demônio.

Agora a dupla é uma das mais famosas equipes investigativas do mundo, e com as habilidades de Neuro, o senso humano de Yako e outras criaturas estranhas, diversos mistérios começam a aparecer e se revelarem cada vez mais surpreendentes para um mundo onde humanos podem ser muito mais perigosos do que demônios…

Considerações Técnicas

Majin Tantei Nougami Neuro é um mangá de Yuusei Matsui publicado entre os anos de 2005 e 2009, totalizando 202 capítulos na Shounen Jump e cedendo 23 volumes encadernados. Em uma época em que o digital ainda não era a predominância do mercado e em que os mangás ainda não explodiam nesse formato nos Estados Unidos, por algum motivo que desconheço o título não veio ao solo do Tio Sam, mesmo o anime – adaptação do estúdio MadHouse feita em 2007 com 25 episódios – chegando até o país. Esse talvez tenha sido um grande fator para o mangá não ter alcançado um sucesso fora do Japão, mesmo ele tendo sido publicado na França (pela Glénat) e na Espanha, pela Planeta DeAgostini, a mesma que licenciou o título na Itália mas que nunca chegou a publicá-lo.

Os anos de 2004 e 2005 acabaram trazendo para dentro da Shounen Jump uma tendência que estava “em falta” na revista. Além de ser a época da estreia de séries famosas hoje em dia como Gintama e Hitman Reborn!, a publicação também começou a dar um toque “alternativo” em suas obras. Foi assim que em 2004 surgiram Death Note (sucesso que dispensa apresentações), D.Gray-Man (que posteriormente foi transferido para a Square), LIVE (de Haruto Umezawa, autor bem conhecido dentro da editora) e outras séries menos “abaladas” como Mikakunin Shounen Gedoh. Também na mesma época surgiu Neuro, primeira obra de Matsui. O que todas as obras tem em comum? Tirando D.Gray-Man – que posteriormente acabou se transformando em um shounen com um foco maior nas chamadas “batalhas” – todas as séries acabaram buscando em uma base sobrenatural e mais “pesada” um desenvolvimento um pouco mais alternativo e diferenciado para o clima da Shounen Jump.

E particularmente dizendo, é nisso que Neuro se destaca. Com um traço pouco chamativo (o que não quer dizer feio) e com um início considerado por muitos “forte” – que coincidentemente acabou sendo reduzido gradativamente -, Neuro acabou conquistando seu público pela forma como a narrativa é conduzida durante todos os seus 202 capítulos. Muitas obras utilizam-se do tema “demônios” mas não se apropriam da mesma forma como Matsui conseguiu fazer em sua série. Aqui não só os monstros do outro mundo, como o próprio Neuro, são os chamados “demônios”. Com um jogo interessante no roteiro e nas passagens dos arcos, somos apresentados ao mundo humano não muito distante da personalidade daqueles que deveriam ser os vilões da história. E Neuro é o próprio ponto de desequilíbrio entre os dois mundos.

Ao mesmo tempo em que o nosso suposto protagonista é cruel e deseja somente satisfazer seus instintos próprios, ele também é o mais querido personagem da história, com seus castigos bizarros com a jovem Yako, ou os abusos de “chefia” com o delinquente Godai, além das cenas bizarras envolvendo a “trança” Akane. Seu carisma é daqueles que te prendem logo nos primeiros capítulos da história e te convencem a continuar a leitura. Neuro cresce muito com o passar do  desenvolvimento do mangá em  todos os sentidos. Durante todos os capítulos, vemos uma interação simples mas suficiente para nos provar que a introdução de Yako na vida do demônio foi o suficiente para que ele mudasse seus hábitos, seu jeito e até mesmo a sua personalidade – mas sem deixar de lado todo o “charme” do personagem.

O grande foco do mangá são os casos e mistérios resolvidos pela dupla Neuro e Yako, e que conseguem variar entre o episódico caso de um cozinheiro invejoso, até o complexo caso do temível Sai. Apesar de ser muitas vezes “non-sense” e tudo parecer ser resolvido unicamente graças ao poder demoníaco de Neuro e de suas armas do Makai – diversas ferramentas que ele usa no decorrer da série e que ajudam os detetives da forma mais bizarra possível -, na verdade todos os capítulos e casos possuem uma explicação que te fazem pensar “Foi assim tão simples de se resolver?”. Tudo é muito bem descrito pelo autor e isso te ajuda muito na facilidade de entender um mistério ou de analisar um culpado.

Dentre os casos mais grandiosos da série, dois estão em evidência. O primeiro é o arco do HAL e Sai (X), fase que acabou sendo adaptada em partes para o anime e que ocupa praticamente metade dos capítulos do mangá. Apesar de começar de uma maneira mais fria, logo na primeira aparição de Sai já podíamos ver que ele seria um vilão que alteraria os rumos de Neuro e de Yako. Inclusive é nesse arco que o mangá passa a ter pequenos elementos do chamado “battle shounen”, mas nada que descaracterize a obra e nem que passe a ser o foco da série. O embate entre Sai e Neuro é memorável.

Logo em seguida temos o surgimento da organização “The New Bloodline”, comandada pelo grande vilão do arco chamado de Sicks (Six). Assim como no arco anterior, esse ocupa a segunda metade da série e nos apresenta um desenvolvimento surpreendente e que consegue se manter equilibrado até o fim do mangá, encerrando Nougami Neuro de uma forma coesa e que apesar da saudade, consegue deixar tudo muito claro e esclarecido na mente do leitor. Além de Six, também vale a sua atenção nesse arco para um dos membros da organização chamado de Kasai, que com certeza representa uma das personalidades mais perturbadoras que Matsui conseguiu colocar dentro da publicação.

Juntando todos os elementos descritos, temos em Neuro uma série constante, com personagens marcantes – e impactantes – e com um clima que poucos autores conseguem transmitir dentro da Shounen Jump. Como disse antes, Neuro não possuiu a influência de Death Note, mas com certeza simbolizou uma bela época para a revista e para os que buscavam uma resposta aos tradicionais mangás de batalhas que já faziam sucesso. Neuro prova que pode ser simples e genial. E essa é a melhor definição para esse mangá.

Comentários Gerais

Já deu pra perceber que Majin Tantei Nougami Neuro é um mangá digno de qualquer recomendação. Mesmo sendo um título que vendia apenas “razoavelmente bem” na Shounen Jump, os 23 volumes passam voando em uma leitura agradável e que enganaria a muitos se dissessem que o mangá foi publicado em uma Young Jump da vida (selo seinen semanal da Shueisha). Sem precisar apelar para ecchi, pornografia e dosando de forma afiada e intuitiva todas as cenas de ação e violência, Neuro consegue atrair um público diferente de outras obras da publicação em que foi lançado e de quebra constrói uma narrativa que ao lado de Death Note, poderia ser mais explorada pelos editores – e até tentam, com séries como Enigma, Yotsuya-senpai e entre outras. Mas isso fica para outro post.

O que você precisa saber é que se você é um colecionador, terá que recorrer para as edições japonesas do mangá (ou as francesas se quiser e puder) e o leitor mais “casual” terá que percorrer a internet em busca da obra. Infelizmente, é um título que dificilmente chega ao Brasil, já que não esteve em solos americanos e que possui um número de edições relativamente “alto” para um mangá desconhecido. Mas se você gosta de obras de investigação com um clima diferente, um personagem principal maluco e cativante, com certeza vai amar esse título.

Majin Tantei Nougami Neuro não é genial, mas é diferente. Não é espetacular, mas é divertido. Não é Death Note, mas tem o seu carisma próprio e, quiçá, um personagem mais memorável do que qualquer Light ou L. A forma como a mente humana é demonstrada dentro do mangá é algo que com certeza você não vai encontrar com facilidade em qualquer outra obra. Nosso personagem principal diz e pra terminar esse texto – e exemplificar – nada melhor do que uma citação do próprio Neuro, e indiretamente uma mensagem de Matsui: “Continuo achando que os seres humanos possuem uma parede que limita suas habilidades… mas vocês sempre me mostram que podem ultrapassá-la facilmente, por acidente”.

por Dih

Esse texto é uma das colaborações ao Jump Weekend, evento em que os blogueiros, podcasters e outros fãs da revista Shounen Jump, se reuniram para comemorar os 44 anos da revista. Logo teremos um local reunindo todas as postagens, mas para quem quiser dar uma “bisbilhotada” no que tá rolando, basta entrar no Twitter e procurar pela hashtag #JumpWeekend ! Muita coisa boa vai sair desse grupo e esperamos que todos gostem do resultado final.

Dih

Criador do Chuva de Nanquim. Paulista, 31 anos, editor de mangás e comics no Brasil e fora dele também. Designer gráfico e apaixonado por futebol e NBA.