Zaregoto – Na Trilha das Feras: Notas sobre Tóquio Proibida (Jake Adelstein)

zaregoto2Obra que será adaptada em Hollywood é o tema da segunda postagem de coluna.

Shibata ofereceu-me um de seus cigarros, que aceitei. Ele tinha quase acabado com o maço de Lucky Strike. Balançou a cabeça e olhou para o chão durante alguns minutos. Depois levantou o olhar para mim e olhou fixo nos meus olhos. Não sei o que ele viu, mas balançou a cabeça de novo.

“Já sei o que você está querendo fazer. Não acho que seja ajuizado. Mas compreendo. Você tem certeza de que quer prosseguir trilhando esse caminho? É kemono no michi.”

“Kemono no michi?”

“Em algumas ocasiões, nas montanhas, por passar diversas vezes pelo mesmo caminho, os animais produzem trilhas. Se você não souber disso, pode pensar que a trilha foi traçado por seres humanos… Parecem feitas por homens. Se você seguir essa trilha, a trilha das feras, não vai chegar a lugar nenhum. Quando as pessoas que se perdem nos ermos seguem essas trilhas, só conseguem ficar cada vez mais perdidas. Às vezes se desorientam totalmente e morrem. Não é um caminho para seres humanos, é um desvio perigoso. Você tem certeza de que essa é a estrada que quer tomar? Ela pode não levar aonde você está querendo chegar.”

“Olhe, estou apenas acompanhando o caso. Não pretendo fazer loucuras.”

“Não, você não está pretendendo nada. Pense um pouco. Mantenha os olhos no caminho certo, não no caminho errado.” (Pags. 393 e 394)

O tal Shibata do diálogo acima é um ex-chefe yakuza prestes a morrer de câncer no fígado. Aquele que ele aconselha se chama Jake Adelstein, um norte-americano que fez carreira jornalística no Japão. O caso em questão se refere ao obscuro transplante de fígado que Tadamasa Goto, o então líder e fundador do Goto-gumi, a mais poderosa e violenta ramificação do Yamaguchi-gumi, não menos que a maior facção yakuza do Japão, teria feito na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) anos antes. Adelstein está trabalhando em uma matéria que visa esclarecer o ocorrido. Goto, por sua vez, quer Adelstein morto. Já Shibata não tem muito a ver com nada disso, é apenas uma das inúmeras fontes que servem ao judeu intrometido ao longo de sua investigação; seu conselho, no entanto, é acertado: seguir um caminho que vai de encontro aos interesses do crime organizado pode levar à perdição.

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Essa conversa se deu em dezembro de 2006, no leito de hospital do velho criminoso, porém só se tornou pública em 2009, quando Adelstein reuniu os pormenores do caso de Goto, além de revelações acerca de seus 12 anos de atuação no jornalismo investigativo em Tóquio Proibida: Uma Viagem Perigosa pelo Submundo Japonês (Tokyo Vice: An American Reporter on the Police Beat in Japan, no original), um registro que, patinando entre livro-reportagem e memórias, constitui uma pérola que perpassa diversos campos do interesse.

Essa pequena troca de palavras que escolhi para abrir o texto não têm lá muita importância; ela ocupa parte das páginas 395 e 396 da edição nacional do livro, editado pela Companhia das Letras, que, ao todo, soma 455 laudas, e não é particularmente mais impactante que a predominância das passagens desse intenso texto. Desde então Shibata morreu, Goto, após condenado judicialmente e banido de sua organização, se tornou um monge budista, e Adelstein, agora atuando de modo independente, continua a publicar o que diversos setores da sociedade japonesa não querem que se saiba. O conhecimento de nenhum desses fatos tem, em si, relevância, assim como o referido diálogo. Guiados por Adelstein pela trilha das feras, o importante é compreender como, envolto por esses fatos – que somente assim ganham significação –, ele se perdeu.

Uma mão lava a outra: A vida de jornalista no Japão 

O homem.
O homem.

 “Você e eu estamos no mesmo negócio. Você colhe informação para vender, eu faço a mesma coisa. Você é pago para publicar informação escandalosa no jornal; nós somos pagos para manter essa informação longe do jornal. Ambos estamos na indústria da informação.” (Pag. 128 – Naoya Kaneko, número dois da sucursal de Saitama do Sumiyoshi-kai, segunda maior facção yakuza do Japão, em conversa com Adelstein) 

Primeiramente, o que me levou a explorar Tóquio Proibida não foi o desejo de me inteirar nas atividades do submundo japonês, e sim o de compreender como opera o dito quarto poder por aquelas bandas, questão que, enquanto estudante de jornalismo, sempre me intrigou. Ao longo de todo o livro, e em especial na primeira de suas três partes, na qual o repórter narra os iniciais e, frente ao que enfrentaria no futuro, pacatos anos de sua trajetória no Yomiuri Shimbun, jornal de maior circulação do mundo, essa curiosidade foi sendo sanada pelo lúcido relato de Adelstein, que, quer no bom-humor com que revela infindáveis curiosidades sobre aquela estranha cultura, quer na seriedade que assume para fazer incômodas denúncias contra a vertical sociedade nipônica, mantém uma profissional sinceridade. Sinceridade esta que não faz questão de ocultar ao leitor que a prática de jornalismo policial no Japão vai contra tudo que se aprende na Universidade. Em pouco tempo de leitura aceitamos que o puxa-saquismo, o conflito de interesses, a troca de favores e, em certos momentos, a chantagem – a melhor amiga de um repórter iniciante, diz o autor em certo capítulo – são elementos tão comuns ao cotidiano do comunicador quanto a caneta e o bloco de anotações.

A razão para tanto é burocracia que assola as forças de segurança do país. No Japão não há acesso aberto aos dados e processos policiais, e os meios de comunicação recebem apenas resumos dos casos em palestras e coletivas realizadas pelas autoridades, nas quais, em geral, pouco ou nada é revelado. Caso se pautasse apenas por essas informações, o jornalismo policial japonês se resumiria ao mais parco oficialismo, aquele que todo curso de comunicação social do planeta aponta como antítese da profissão, e, portanto, a criação de mecanismos que permitissem à imprensa ir além das informações oficiais se fez necessária. Mas não quero romantizar demais a coisa; há um fator ainda mais importante: jornais são produtos, estão inseridos num mercado competitivo e, a fim de se diferenciar de seus concorrentes, a notícia exclusiva, o furo, é indispensável, e seria impossível consegui-lo caso se utilizasse apenas a informação disponível a todos os veículos.

Mas como obter um furo? Segundo longa instrução dada em Um dia na vida do repórter policial, manual corporativo recebido pelos focas do Yomiuri, fazer amizade com os policiais e, imediatamente, bajula-los, dar-lhes presentes, tornar-se íntimo deles e de suas famílias, oferecer-lhes serviços e fazer tudo o quanto possível para agradá-los é o método ortodoxo – e o que vemos aplicado ao longo de todo o texto. Em suma, a informação privilegiada, usualmente fornecida por um policial vendido (acreditem, o termo não é exagerado, tanto que alguns jornalistas descrevem a si mesmos como gueixas do sexo masculino ou simplesmente prostitutos), é a matéria-prima do jornalismo investigativo daquele arquipélago. A esse respeito, Jake pondera: “Se você acha que esse método desenvolve um estilo tendencioso de reportagem, muito voltado para o policial, está certíssimo. A polícia japonesa adora manipular a imprensa, e nós estamos loucos para nos submeter a essa manipulação, desde que renda um furo”. Antiético? Imoral? Talvez. Contudo, como Adelstein conclui ao cabo de suas primeiras matérias, “em jornalismo, o que vale são os resultados, não o esforço”. Como diria Tom Wolfe: negue se quiser!

0,5 em cada grupo de 100 mil habitantes. Essa foi a taxa de homicídio registrada no Japão em 2011, uma das menores do mundo, status mantido há décadas. Soa assustador em vista dos 26,2 a cada 100 mil habitantes vergonhosamente registrados no Brasil em 2010. Contrastando com a banalidade com a qual nos habituamos a encara-los, os assassinatos são raros no Japão, eles chocam a sociedade e, portanto, são grandes notícias. É por isso que, embora se debrucem sobre furtos e outros casos mais corriqueiros, os assassinatos são o que, perdoem a expressão, fazem palpitar o coração do repórter policial japonês. “Assassinato dava sempre grandes matérias em Saitama, como em qualquer parte do Japão. Isso é bem revelador do nível de segurança do país: um assassinato, qualquer assassinato, é notícia nacional”, informa o narrador que, não por acaso, trata de casos de morte em boa parte do registro.

Todavia, o tratamento dado pela mídia aos assassinatos revela também um aspecto menos louvável da sociedade nipônica: a xenofobia. Segundo o protagonista, a despeito da comoção gerada pelos homicídios, “há exceções: quando a vítima é um chinês, um yakuza, um sem-teto ou um estrangeiro não branco, o valor da notícia cai uns cinquenta por cento”. E, como era de se esperar, o próprio Adelstein, americano e judeu, sofre constantemente com a sua condição de gaijin – rendendo alguns episódios divertidos, e outros nem tanto.

Contradições dessa estirpe parecem estar arraigadas àquela cultura. Vemos, por exemplo, que, embora o assassinato constitua um escândalo, o suicídio é tido como um fato de pouca importância. Flutuando há muito em torno dos 30 mil casos por ano, o Japão ostenta uma das maiores taxas de suicídio do mundo, sendo esta a causa de aproximadamente 47% das mortes de jovens entre os 20 e os 29 anos. Isso também não escapa aos olhos do repórter, que rememora um caso que beira o surreal: após presenciar um homem atear fogo ao próprio corpo em uma praça, fato encarado com naturalidade pelas crianças que ali brincavam e pelos bombeiros que vieram ao socorro do indivíduo, ele liga para seu superior no jornal, que pergunta de prima: “O cara é conhecido?”. Após a negativa, o telefone é desligado com um simples “Então deixe para lá”.

Adelstein e dois dos exemplos dos manuais abaixo citados.
Adelstein e dois dos exemplos dos manuais abaixo citados.

O suicídio é também uma forma escolhida por Adelstein para apresentar outra peculiaridade do Japão: o amor, ou melhor, a obsessão pelos manuais. Em suas palavras, “Os japoneses acreditam que existe uma maneira certa de viver, amar, provocar o orgasmo feminino, decepar um dedo mínimo, tirar os sapatos, girar um bastão de beisebol, escrever uma matéria sobre homicídio, morrer – e até acabar com a própria vida. Há uma maneira certa – uma maneira perfeita – para fazer qualquer coisa”. Afirmação se verifica no fato das listas de best-sellers estarem infestadas pelos manuais, que abordam os mais diversos temas: Manual de como Argumentar com coreanos que não têm nada de bom a dizer sobre o Japão; Manual da felação e da cunilíngua superorgásmica – com mais de quatrocentas fotos, Sexo: manual do estímulo; O cara desejado (Como conquistar garotas): Manual de quarenta [técnicas] – O que as mulheres, no fundo do coração, esperam de fato dos homens; dentre outros tesouros figuram esses rankings. Parece bizarro, e de fato o é, mas não é de se espantar que haja também um Perfeito manual do suicídio, e que, à época, este fosse um dos mais comercializados – e seguidos – títulos do Japão. O contato com essa faceta do país abalou o então novato jornalista, mas tudo isso se tornaria sem valor conforme ele conhecesse o verdadeiro lado sombrio do sonho.

O curioso e o horrendo: A indústria japonesa do sexo 

“Em matéria de áreas de entretenimento, em 1999 nenhuma ganhava de Kabukicho em sordidez. Drogas, prostituição, escravidão sexual, bares de preços extorsivos, casas de garotas de programa, salões de massagem, salões de sadomasoquistas, lojas de pornografia e produtores de material pornográfico, bares caros de acompanhantes, salões baratos de boquete, mais de cem facções de yakuzas, máfia chinesa, bares de prostituição gay, boates de sexo, lojas de calcinhas e uniformes usados de colegiais e uma população de trabalhadores mais diversificada do que em qualquer outro lugar do Japão. Era como um pais estrangeiro no meio de Tóquio. É claro que eu não tinha ideia da péssima reputação do lugar naquela época. Tudo o que eu sabia era que tinha sido escolhido para fazer a cobertura.”(Pag. 193) 

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Melhor andar onde pisa: Aqui é Kabukicho, filho da puta!
Melhor andar onde pisa: Aqui é Kabukicho, filho da puta!

Como revelado pelo esforço de já na primeira linha situar no passado esse caótico panorama, a Kabukicho acima descrita não mais existe, tendo sido gradativamente varrida durante o governo de Shintaro Ishihara (1999 – 2012). Mas sua sombra ainda serve para que estudemos uma das mais curiosas camadas da sociedade nipônica, tanto do ponto de vista cultural quanto do legal: a indústria do sexo.  Não é preciso comentar, mas ela se relaciona de modo bastante direto com grande parte dos fãs de entretenimento japonês, mais precisamente do entretenimento adulto. Nesse meio, algumas questões são comuns: por que são utilizadas tarjas pretas e mosaicos quadriculados nos hentais? Por que tentáculos predominam na pornografia japonesa? Como funciona, afinal, lei que regulamenta esse tipo de produção? Para elucidar essas dúvidas é preciso antes compreender em linhas gerais a lei que regulamenta a prestação de serviços sexuais no Japão. Enquanto novato no pedaço, Adelstein fez um tour pelo distrito do pecado com um policial que viria a se tornar uma de suas principais fontes, e recebeu uma esclarecedora explicação acerca dessa legislação, que vale a pena reproduzir: 

“Você precisa entender que a Lei de Prevenção da Prostituição serve na verdade para proteger as prostitutas. Poderia chamar-se Lei de Proteção da Prostituta.”

“E como funciona?”

Quando passávamos pelo Bareo, ele me mostrou uma prostituta tailandesa meio escondida num beco, tentando conseguir clientes.

“Eu poderia prendê-la se ela praticasse um assédio aberto, isso é ilegal. Mas se os caras vão até ela, não há problema. De qualquer modo, a coisa é assim. Depois da guerra, havia um monte de gente vendendo as próprias filhas no mercado do sexo. Como se fossem escravas.”

Assenti.

“Bom, em 1958, a prostituição naqueles moldes foi proibida. Passou a ser uma atividade autorizada. A ideia era garantir que as mulheres não pudessem ser obrigadas à submissão sexual. Assim, as pessoas punidas pela lei são basicamente cafetões, donos de bordéis e caras que abordam clientes para prostitutas. Na época, a ideia era que muitas das mulheres da indústria do sexo estavam sendo coagidas, e, se fossem punidas, a punição estaria atingindo as vítimas. Além disso, ninguém recorreria à polícia. Para a puta e seu cliente, não há punição. Se a mulher tiver menos de vinte anos, podemos manda-la para um albergue.”

“Por que a lei não pune os clientes? Isso não desestimularia o comercio?”

“Certamente, mas quem você acha que fez as leis? Homens. Porra, na década de 1950, era provável que metade da Dieta frequentasse a soapland. Havia um enorme problema social, com garotas vendidas como gado, e alguma coisa precisava ser feita, mas isso não quer dizer que os caras fossem usar os próprios paus como munição de bodoque. Então ficou assim.”

“Então não há punição pelo fato de ser uma prostituta ou dormir com uma delas. E sobre tudo o mais que acontece aqui? Deve ser ilegal, não é?”

“Nada disso. A regra geral diz que, desde que não haja intercurso propriamente dito, um estabelecimento pode oferecer qualquer tipo de serviço sexual que você quiser. Desde que não haja penetração de uma vagina por um pênis. Claro que existem restrições em cada área e coisas assim.”

“É por isso que eles podem anunciar, certo?”

“Livremente. Em jornais, letreiros, embalagens de lenços de papel. Dê uma olhada nesta fachada.”

Estávamos diante de uma casa cujo nome era algo como Enfermeira do Pau.

O cartaz mostrava japonesas sem calcinha com uniformes brancos de enfermeira complementados por chapeuzinhos brancos, agachadas sobre um japonês anônimo, com as mãos entre as pernas dele. O anúncio não tinha nada de sutil:

Trinta minutos, 6 mil ienes. Nossas enfermeiras vão devolver a saúde a suas partes baixas. Estas enfermeiras treinadas vão examinar e explorar todas as partes de seu corpo e tomar sua temperatura, oral ou anal, como você preferir. Diferentes opções.

“E isso é legal, certo?”

“Sim. Desde que as garotas não fodam com os clientes –  não há problema. Veja, você pode constatar que nós permitimos que elas trabalhem dentro das leis de entretenimento adulto.” (Pags. 205, 206 e 207) 

Menos complicado do que se poderia imaginar, ainda que muito mais bizarro. No frigir dos ovos, é até um bocado simples: com exceção do coito tradicional, e de seu registro para venda, quase tudo é permitido. É por isso que tentáculos assumem o lugar dos pênis na pornografia, e, analogamente, tarjas pretas e mosaicos fingem ocultar o ato explícito nos hentais. Em contrapartida, é legal pagar por uma massagem erótica, por sexo oral ou anal, e pelas mais diversas formas de estímulo sexual. Um jogo hipócrita, no qual é permitido fazer, mas não olhar. E, por estranho que soe, esse modelo goza de certo respaldo social – aparentemente, as coisas são mais instigantes desse modo. “Na verdade, a proibição do coito normal faz que seja mais interessante, acho. Obriga as pessoas a procurar novos caminhos para o prazer erótico. Há uma porção de maneiras de ejacular além da trepada convencional”, ao menos é o que pensa o policial-guia. Ah, povo singular.

Mas não só do prazer físico vive o pervertido japonês. A intimidade é também uma mercadoria pela qual se paga caro naquele lado do globo. Daí os bares de acompanhantes serem um tremendo negócio. E acompanhante, no caso, não é nenhum eufemismo; o termo se refere a moças ou rapazes jovens que são pagos tão somente para acompanhar os clientes do bar durante sua estada, dando atenção, cuspindo elogios, ouvindo seus problemas, fazendo-os se sentir bem. O flerte também faz parte do negócio, é claro, mas são poucas as vezes que o/a acompanhante e o cliente de fato chegam a um acordo de cunho sexual. Os frequentadores desses bares estão, na realidade, pagando por massagens no ego – e essa clientela perpassa desde quarentões frustrados, que usualmente seriam apontados como contratantes desses serviços, até colegiais do sexo feminino.

Curioso, não? Contudo, como Jake não tardou a descobrir, a flexibilidade das leis que regulam essa fatia do mercado faz com que o sonho de alguns seja sustentado pelo pesadelo de outros. Vejam bem, uma vez que a lei, em teoria, foi formulada com intuito de proteger as mulheres que trabalham nesse ramo, cristalizou-se a opinião geral de que elas estão plenamente assistidas, e que qualquer ato sexual por elas praticado é fruto de um acordo com fins econômicos, ou seja, é consensual. É evidente que espécie de práticas essa mentalidade fomenta. Em geral, quando prestada por uma acompanhante ou prostituta, uma denúncia de abuso sexual é irremediavelmente encarada como mentira, sendo recebida pelo grosso dos oficiais com perguntas como “Tem certeza que não o provocou?”.

Lucie Blackman, uma das muitas vítimas de violência cujo caso foi coberto por Jake
Lucie Blackman, morta em 2000, uma das muitas vítimas de violência cujo caso foi coberto por Jake

E o viés jurídico não é o único responsável. As mulheres sempre ocuparam a base da piramidal sociedade japonesa – e é assustador que os avanços conquistados pelo sexo feminino ao longo do século XX, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, pouco impactaram essa organização. Ainda hoje trabalhadoras recebem salários ridiculamente inferiores a homens que exercem exatamente as mesmas funções, sendo ainda enxergadas como criaturas submissas em todos os aspectos do cotidiano, como nas confraternizações, empresariais ou não, nas quais é função das mulheres servir aos homens. Quanto ao aspecto mais extremo, o criminal, é notório que no Japão o assedio sexual e o estupro são crimes com penas brandas, que, de qualquer forma, raramente são aplicadas.

E voltando afalar de xenofobia, se a vítima for uma estrangeira, como no caso de boa parte das acompanhantes de Kabukicho e Roppongi, a impunidade torna-se denominador comum. A história se parece bastante com o que reportagens, filmes e até novelas há muito relatam: garotas são atraídas por promessas de dinheiro limpo, fácil e rápido – o que no caso japonês é de certo modo factível, vide a popularidade dos bares de acompanhantes, que, repito, não necessariamente inferem a prostituição –, e, uma vez contratadas, têm seus documentos roubados e são forçadas a vender o próprio corpo para quitar dívidas sobre as quais não foram informadas. É escravidão, pura e simplesmente. Caso tentem ir às autoridades, são de imediato deportadas, pois, grosso modo, estão trabalhando com visto de turista, o que é ilegal. Isso se não forem antes apagadas pelos yakuzas que controlam o mercado do tráfico de pessoas, claro.

“Para fazer isso [iniciar um processo] precisamos de provas, e essas mulheres não são boas testemunhas, porque não entendem japonês e não podem dar um depoimento consistente. Além disso, estiveram trabalhando ilegalmente no Japão, o que é crime, e têm de ser deportadas. Depois que são deportadas, é difícil instaurar um inquérito.”, foi a resposta que Adelstein recebeu por vezes sem conta após se engajar na causa dos direitos “dessas mulheres”. A partir de então, ele se tornou um verdadeiro incômodo tanto para a Yakuza, que fatura alto com esse tipo de atividade, quanto para o governo, que foi internacionalmente desmoralizado por suas matérias. O barulho causado por sua militância foi um dos fatores que, em 2004, fez com que o Departamento de Estado dos Estados Unidos pusesse o Japão numa lista de observação de países que davam pouca importância ao tratamento de problemas ligados ao tráfico de pessoas, ranqueando-o pouco acima da Coreia do Norte, o que configurou humilhação nacional. Desde então, Jake saiu do Yomiuri e mergulhou no jornalismo independente, onde suas denúncias tinham lugar assegurado. Tornou-se uma autoridade no assunto, sendo chamado para participar de painéis sobre trabalho escravo em locais como a Universidade das Nações Unidades. O homem lutou e continua a lutar, porém o sistema penal japonês praticamente não se modificou no curso desses poucos anos.

Em certo ponto, ele desabafa:

“Acho – e, como não estou escrevendo para um jornal, posso expressar minha verdadeira opinião – que a agressão sexual contra mulheres nunca foi a prioridade da polícia. A pena por estupro é insignificante (geralmente dois anos, no máximo) e a possibilidade de suspensão da sentença para réus primários é tão grande que isso nem parece um crime grave.

“As acompanhantes não são vistas como vítimas por grande parte da polícia, mas como prostitutas vitimizadoras, gananciosas e manipuladoras. Principalmente as estrangeiras. Não sei como seria possível mudar essa mentalidade. Mesmo que a vítima seja uma prostituta, continua sendo vítima. As prostitutas conseguem dizer não. Mulheres drogadas contra a vontade não conseguem dizer coisa alguma.”

Furioso, amargurado, mas ainda profissional. São palavras como essas, e o que elas carregam, que fazem dessa uma leitura fascinante.

Entre ratos e homens: O caminho final 

Marcado para sempre: As costas de um yakuza.
Marcado para sempre: As costas de um yakuza.

“Há muito tempo os yakuzas vêm desfrutando de uma posição ambígua na sociedade japonesa. Como seus primos italianos, eles mantêm profundos e obscuros laços com o partido governante, caso, no Japão, o Partido Liberal Democrático (PLD). Robert Whiting, autor de Tokyo underworld (O Submundo de Tóquio), e outros especialistas dizem que o PLD na verdade foi fundado com dinheiro dos yakuzas. É um ‘segredo’ tão escancarado que se podem comprar gibis na loja de conveniência 7-Eleven que contam como isso aconteceu. O avô do primeiro-ministro Koizumi Junichiro era membro da organização criminosa Inagawa-kai e todo tatuado. Integrou o gabinete e era conhecido entre seus constituintes como Irezumidaijin – “O ministro tatuado”. No passado, a reputação dos yakuzas, que, segundo se dizia, restringiam as disputas a si mesmos e não incomodavam a família de bandidos de outros grupos, ou ‘não combatentes’, os protegia da ira popular e da atenção da polícia. Eram considerados um ‘mal necessário’ e uma ‘segunda força policial’, que mantinha as ruas do Japão livres de assaltantes e ladrões comuns. Ainda assim eles eram considerados fora da lei.”(Pag. 124) 

O tom deste texto se tornou um tanto pesado. Talvez eu devesse tê-lo encerrado na página anterior, mas quero ainda falar brevemente sobre as interessantes informações que Tóquio Proibida traz sobre os reis desse império nefasto, os gokudo, como a maioria dos yakuzas preferem ser chamados, que significa literalmente “o caminho final”. Bem, parece um nome apropriado. É do saber popular que a vida do crime é um caminho que leva a apenas um destino – e, quando se tem um corpo frígido repleto de tatuagens que o marcam para sempre – além da grande possibilidade de adquirir doenças em razão disso, seja por uso de agulhas infectadas, seja em razão da morte das glândulas sudoríparas, que expelem doa parte das toxinas do corpo, regulando o bom funcionamento dos órgãos – parece mais apropriado ainda.

Susumu Kajiyama, o Imperador da Agiotagem, figura que simboliza os novos yakuzas corporativos.
Susumu Kajiyama, o Imperador da Agiotagem, figura que simboliza os novos yakuzas corporativos.

Mas os tais yakuzas honrados dos velhos tempos não parecem mais ter lugar nas organizações que, modernizadas, agem sob a lógica do dinheiro a qualquer custo. E pior: não só das atividades ilegais se faz o crime organizado; pelo contrário, um dos principais desafios atuais das autoridades japonesas é evitar que a máfia infecte ainda mais os negócios lícitos. Já em 1998, a construção civil, o setor imobiliário, o setor financeiro, bares e restaurantes e consultoria administrativa eram os cinco principais campos de atuação das organizações. Segundo Adelstein, “alguns policiais de Tóquio usam a palavra ‘corretor’ como sinônimo de yakuza, tão fortes são as relações entre o crime organizado e o mercado imobiliário”. Quadro que se agrava com a constatada conivência de grandes instituições, como bancos estrangeiros, para com as atividades dos “sindicatos”. Em setembro de 2004, o Citibank perdeu a autorização para funcionar no Japão, sendo um dos motivos a vista grossa para com a lavagem de dinheiro do crime organizado; em 2009 o mesmo banco tornou a ser punido em caso semelhante. De fato são estreitos os laços entre o crime e o poder, como constatou Sho Fumimura em seu brilhante Sanctuary.

Quais são os grupos que dominam esse mundo? É dito que há décadas o número de gangsteres no Japão desliza em torno dos 80 mil, sendo que mais de 2/3 desse montante se dividem em apenas três organizações: o Sumiyoshi-kai, com algo em torno de 12 mil membros; o Inagawa-kai, com uns 10 mil; e o Yamaguchi-gumi, com um exército de 40 mil soldados. Essas facções se fragmentam em inumeráveis subgrupos. Existem, no entanto, apenas 22 organizações reconhecidas pela polícia japonesa, que, em 1992, implementou a mais rígida legislação da história contra o crime organizado. É vexatório que, apesar disso, a força policial ainda não conte com instrumentos básicos de atuação, como grampos telefônicos, sistema de proteção a testemunhas e acordos entre promotoria e réus para admissão da culpa e redução da pena (delação premiada).

Em linhas gerais, tanto os negócios dos yakuzas quanto a ação policial são bastante diferentes do que os filmes e mangás expressam. Não há muita honra nesse meio. Ao menos não mais. Ou talvez nunca tenha havido. É o que Masaki Shibata, aquele do diálogo que abre o texto, comenta: “Talvez tenha sido sempre uma merda. Não sei. Fiz uma porção de coisas ruins na vida, mas algumas coisas fiz direito. Nunca traí o oyabun, nunca dei rasteira em amigo e nunca corri de uma briga. Pode não ser muito, mas dá a medida do que eu sou”. Parece cinematográfico? Pacas. Mas não são poucos os personagens que poderiam muito bem ter sido escritos por Raymond Chandler distribuídos ao longo do livro – e, ao término deste, Adelstein agradece ainda a “uns poucos yakuzas do bem. Sim, eles existem”. É. Não duvido. 

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“Não me arrependo de muitas coisas que fiz. Bom, talvez tenha começado como um pau-mandado, mas joguei o jogo o melhor que pude. Combati veneno com veneno e provavelmente me envenenei nesse processo, mas era a única forma de fazer isso. Protegi minha gente e fiz meu trabalho, e no final das contas isso é uma espécie de vitória” (Pag. 447)

Pode crer que é uma vitória, e em mais de um sentido. Comentei por alto que sou um estudante de jornalismo, certo? Bom, não canso de ouvir dos meus professores da faculdade, a qual ainda cursarei por quatro semestres, que o jornalismo está morto, e que fazemos pouco mais que publicidade hoje em dia. Olha, pode ser que a esfera de discussão com a qual sonhou Walter Lippmann não seja mais possível, e pode ser que não haja mais espaço para os gatekeepers da sociedade. Mas de quando em quando me recordo da famosa frase de George Orwell, segundo o qual “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”, e, ao explorar os trabalhos investigativos de profissionais como  Roberto Saviano, Caco Barcellos e Jake Adelstein, me pergunto: Então o que seria isso, senão jornalismo de ponta?

Observações:

 • Se quiserem acompanhar o trabalho de Adelstein e de seus colaboradores, acessem http://www.japansubculture.com/, onde acharão uma série de artigos interessantes sobre o lado oculto do Japão.

• Os direitos de Tóquio Proibida já foram vendidos para Hollywood, e o filme começará a ser rodado no Japão no próximo ano. O diretor será o inexpressivo Anthony Mandler, e Adelstein será vivido por Daniel Radcliffe (é, o Harry Potter). Digo apenas que tenho cu e medo, colegas.

ChuNan News

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