Review – A delicada e sensível leitura de uma infância em ‘The God’s Lie’

Cinco mentiras. Três crianças.

Eu acho meio maluco o ritmo que as editoras estão lançando mangás no Brasil. É só lembrar a quantidade de anúncios e lançamentos que a JBC e a Panini tiveram no ano passado, abarrotando as bancas de jornais e livrarias com os mais diversos tipos de títulos. É claro que por um lado isso é excelente, afinal de contas, variedade nunca é ruim, só que isso também faz pesar o bolso do consumidor e, esse, precisa ser cada vez mais seletivo com o que vai comprar.

E por causa disso algumas obras bem legais acabam escapando, sem que os consumidores saibam que saiu ou do que se tratava. Foi o que aconteceu com The God’s Lie – assim como The Wedding Eve – em que peguei totalmente ao acaso e acabei gostando bastante.

HISTÓRIA

Natsuru Nanao é um dos principais jogadores de futebol de sua escola, mas sua relação com as meninas não é lá muito boa por causa de um evento que aconteceu na primeira semana de aula após sua transferência. Só que isso não é um grande problema, afinal de contas, ele tem apenas 11 anos e não se importa tanto com garotas, já que tem o esporte ao seu lado. Mas esse pensamento muda quando ele encontra Rio Suzumura em um final de tarde, o breve momento que os dois passaram foi o bastante para ele começar a reparar mais em Suzumura e em como ela parecia muito mais madura que todo o resto da turma.

Natsuru e Rio voltam a se relacionar devido a um gato abandonado que o garoto encontra na rua, mas a mãe do menino é alérgica ao animal. Por coincidência, Rio estava passando na rua com o irmão mais novo na hora e acabou aceitando ficar com o gato somente se ele pagasse uma mensalidade.  Pouco tempo depois Natsuru descobre que os irmãos moram sozinhos em casa desde que o pai saiu para pescar no Alasca, então Rio pede a ele para que esse segredo nunca seja revelado.

CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS

The God’s Lie é uma mangá seinen de drama e romance criado pela autora Kaori Ozaki, publicado na revista Afternoon em 2013 com apenas 1 volume e lançado pela editora Panini em 2016. Mangás de volume único tem a grande vantagem de ser uma leitura imediata, você não precisa ter lido algo antes para entender ou ter que se dedicar por meses para finalmente ver o encerramento; é um roteiro fechado e sem tempo para encher linguiça. O problema é o fato de ser muito mais complicado desenvolver os personagens, fazendo com que o autor precise conquistar o leitor em muito menos tempo e ainda assim levar sua história para frente.  Colocado isso, eu posso dizer que a autora fez um ótimo trabalho nesse mangá.

O traço da Kaori Ozaki é simples, nada que vá explodir sua cabeça, mas ainda assim, é bonito. Admiro muito a composição das cenas que ela colocou nessa história; desde os detalhes da casa bagunçada dos Suzumuras, até os enquadramentos que dão dicas do que vai ser tocado mais para frente e a delicadeza que teve ao fazer páginas inteiras sem falas ou apenas uma frase. Isso é essencial na hora de transmitir todas as mensagens que essa obra tenta passar para seu leitor.

A trama se foca em apenas dois personagens, Rio e Natsuru, enquanto o irmãozinho dela fica mais como um coadjuvante que serve para desenvolver a irmã. Natsuru é escrito como uma criança de 11 anos que possui um temperamento forte, sua relação com as garotas no início é típico dessa idade onde o sexo oposto é quase um inimigo. Sua indecisão em relação aos problemas de Rio – que chega a beirar a confusão em vários momentos – é típico de um garoto quando se depara com algo que não entende. Enquanto isso, tudo o que vemos na Rio é uma personagem mais madura.  O que eu percebi da narrativa é que a autora mostra que a garota perdeu essa parte final da infância porque precisava cuidar da casa e do irmão, chegando a demonstrar isso no corpo dela que cresce e não parece ser compatível com as outras pessoas da sala que possuem a mesma idade.  O convívio do dia a dia entre os dois faz com que essas duas personalidades se mesclem, enquanto Natsuru aos poucos vai tendo pensamentos mais maduros, Rio vai demonstrando sinais mais infantis e, finalmente, sorrindo.

A história é baseada em cinco mentiras, sendo as duas primeiras as principais; a mentira sobre Rio e o irmão não estarem morando sozinhos e a mentira que Natsuru conta a sua mãe sobre ir treinar futebol com o time, fazendo com que ele vá morar por três dias na casa dos Suzumuras. Se o leitor não comprar essa história, ele provavelmente não gostará do mangá. Eu adorei todo esse início e o relacionamento dos dois, que era algo mais inocente e divertido. Enquanto isso a autora dá pistas sobre as próximas três mentiras em quadros e falas – que na primeira leitura não vão fazer muito sentido, mas que vão se tornar óbvias quando você ler novamente. Claro que não vou entrar muito em detalhes, mas são dois plot twists que me deixaram de boca aberta, sendo a última o motivo e referência ao nome do mangá.

The God’s Lie é um mangá que te faz pensar um pouco nos pequenos dramas que representam nossas vidas, e como o que pode parecer simples para alguns, pode ser extremamente complexo para outros. Em muitos momentos percebemos que tratamos dramas de crianças de uma forma banal, sem ter noção de coisas que realmente acontecem em suas vidas. Existem crianças que vão a psicólogos, que precisam de terapias, que vivem uma infância mais conturbada do que muitos adultos. É claro que estamos falando de uma ficção no caso do mangá, mas o que garante que uma criança real não possa ter um problema e um fardo tão grande que não possam carregar? Quantas você conhece que passam dias inteiros sozinhas, sem adultos que acompanhem seus crescimentos? É uma realidade que não está tão distante assim.

Além disso, todo o mangá é uma grande crítica ao modo de vida que vive o Japão e como a ideia de “ser independente” pode acabar com esses menores. É fácil encontrar em documentários e depoimentos que a sociedade japonesa incentiva muito que crianças façam tudo sozinhas desde muito pequenas. Que consigam se virar e levar adiante desde seus estudos até lidar com tarefas de casa, cuidar de seus irmãos e até mesmo poder administrar coisas que deveriam competir à adultos.

The God’s Lie pode ser levado como uma simples e deliciosa leitura, quanto lhe dar a oportunidade de interpretar vidas de uma forma que talvez você nunca tenha imaginado antes.

EDIÇÃO NACIONAL / PANINI (2016

Não há muito do que se falar aqui. Com ótima tradução e adaptação, The God’s Lie foi um dos lançamentos mais “bonitinhos” do final de 2016 / começo de 2017 no mercado nacional. Formato agradável, com preço convidativo e sem nenhum problema de gráfica como aconteceu com os lançamentos recentes da Panini. No mais, a maior dúvida é o motivo de não ter sido traduzido o título do mangá. Surgem diversos questionamentos já que em quase todos os países em que saiu a opção foi por uma tradução. “A Mentira de Deus” é um nome bem convidativo, por exemplo. Mas isso é alguma decisão editorial daquelas que nunca entenderemos direito o motivo de acontecerem.

The God’s Lie veio no formato “de luxo” da editora – Slam Dunk, Vagabond, Planetes, Bestiarius e tantos outros – com papel off set sem transparência e orelhas. Não temos páginas coloridas, assim como no material original. O preço é de R$16,90, com o formato de 13,7×20 cm, com cerca 220 páginas e, lembrando, volume único. O maior ponto negativo é do mangá não ter sido disponibilizado nas grandes redes de internet como a Amazon. Isso com certeza diminuiu o público que uma obra nesse sentido poderia ter alcançado.

COMENTÁRIOS FINAIS

The God’s Lies não é aquele mangá para mudar sua vida, longe disso, mas que também não merece ser esquecido nas bancas no meio dessa montanha de lançamentos maiores. Possui uma história que vai te surpreender mesmo com seu volume único e personagens que carismáticos e, de certa maneira, profundos. É um título que foi pensado em um certo público alvo (no caso, o japonês, claramente), mas que você pode aprender muito se souber como aproveitar toda a mensagem que a autora tenta transmitir em cada passagem envolvendo as crianças.

Fora isso, eu quero muito apoiar essa iniciativa das editoras em trazer mais mangás de volume únicos para cá e parar de depender tanto de obras que tiveram adaptação em anime. Além de histórias que você pode terminar em apenas uma leitura, também traz um capricho maior com a edição brasileira, com um papel melhor e uma revisão mais detalhada. E bem… também queria que Watashitachi no Shiawase na Jikan fizesse uma aparição por aqui. Será que é pedir demais?

Luk

Eu juro que gosto de animes, apesar de todo o meu haterismo.