Review – ‘A Voz do Silêncio’ é marcante, envolvente e uma lição de vida

Você seria capaz de mudar e se adaptar de verdade?

Algumas obras são difíceis de descrever, principalmente quando elas nos tocam de alguma forma que você se identifica ou que percebe que ela é exatamente como você aprendeu que a sociedade é.

Não foram poucas as vezes em que ouvi pessoas falando que mangás são todos iguais e que não passavam de uma retratação de fetiches e absurdos da sociedade japonesa. De fato, grande parte das obras é assim, o mesmo que acontece em qualquer parte do mundo, incluindo o Brasil. O que alguns esquecem é que essas obras também podem passar lições valiosas e uma representação dos hábitos e das mais diversas facetas do povo nipônico.

Koe no Katachi, ou “A voz do silêncio” na ótima adaptação da editora NewPOP, é um mangá que tenta nos mostrar em um choque o quão cruel podemos ser, por culpa, por chicotes em problemas pessoais e por não aprendermos a ouvir. Em tempos de 13 Reasons Why, e uma discussão tão acalorada sobre os sentimentos e a depressão dos jovens na sociedade atual, o mangá se torna tão contemporâneo como nunca.

A HISTÓRIA

Shouya Ishida é um garoto comum e Shouko Nishimiya é uma nova estudante de seu colégio que é surda, algo totalmente inédito para todos na sala de aula. Shouya é um daqueles garotos que gosta de atrair a atenção para si e quer apenas se divertir, com isso acaba se aproveitando da surdez de Shouko para começar com o bullying com a garota. Porém, um dia o “feitiço vira contra o feiticeiro” e Shouya acaba se tornando o alvo do bullying de seus amigos por causa das suas brincadeiras que fugiram do limite com a garota. Ela se muda de escola e Shouya convive até sua adolescência com o peso de ter feito algo tão infeliz em sua infância. Porém ao chegar no colegial, os dois se reencontram. Será a chance da redenção?

COMENTÁRIOS GERAIS

Koe no Katachi é uma obra de Yoshitoki Oima que começou como um one-shot extremamente elogiado em 2011, na Bessatsu Shounen Magazine, da Kodansha. Em agosto de 2013, o departamento editorial acabou convertendo a história em uma série regular na revista semanal e a série foi finalizada em novembro de 2014 com 7 volumes completos divididos em 62 capítulos. A série foi recebida de uma forma bem calorosa no Japão, tendo grandes problemas por dois motivos: se tratar de uma mulher fazendo mangá e também por tratar de uma crítica tão direta a sociedade daquele país.

Mas se você não entende muito dos motivos da série ser tão expressiva assim, talvez os próximos parágrafos seguintes te ajudem um pouco.

Assim como tantas obras nos dias de hoje, Koe no Katachi usa de um artifício muito hábil para conquistar o leitor: a dramaticidade. Não são poucos os exemplos de mangás que se amarram nesse vértice. Desde Your Lie in April à March Comes in a Lion, é cada vez mais comum os autores executarem trabalhos nos quais os objetivos são acertar o público com problemas no cotidiano de jovens que representam claramente uma sociedade perturbada por problemas sociais. O Japão tem um dos maiores índices de suicídio entre os jovens, além de uma das maiores taxas de bullying no mundo. Séries mais antigas como Life cansaram de retratar facetas mais agressivas do que a visão maravilhosa que alguns ocidentais possuem da vida escolar japonesa.

Apesar de algumas dessas obras parecerem forçadas e superficiais, outras atingem em cheio seu público e se tornam referência, algo que provável Koe no Katachi já se tornou, não apenas no Japão como em muitos países ocidentais (o grande número de países exibindo o longa metragem do Kyoto Animation é uma prova disso). É difícil obras de cunho popular falarem de alguns assuntos de forma tão direta e atraente ao seu público, alinhadas a um visual caprichado, em uma arte carismática e que consegue transmitir uma mensagem de forma visual e textual. Ele consegue.

Alguns podem dizer que REAL, de Takehiko Inoue, trata a representação de deficiências de forma mais abrangente, e eu não irei de discordar. Mas Koe no Katachi é “apenas” um shounen que foi publicado na segunda revista semanal mais famosa do Japão. E isso tem um impacto muito grande quando a maior parte do público pode se identificar com os protagonistas ou com as situações que estão envolvidos. Não é difícil olhar para trás e lembrar que você pode ter sido um Shouya durante muito tempo, ou que talvez grande parte das crianças e jovens não sejam “treinadas” para conviverem em uma sociedade que precisa da inclusão social de pessoas portadoras de deficiência. Também não é difícil enxergar jovens que se rebelam e possuem temperamento difícil ao crescerem em um ambiente familiar difícil. Tenho certeza que você, ao ler esse texto, já encontrou alguém assim. E que talvez não tenha prestado atenção ou dado a devida análise da situação em que se encontram tais personagens em nosso cotidiano.

Em apenas um volume, Koe no Katachi nos revela como o bullying pode afetar jovens e seu desenvolvimento por toda uma vida. Nos mostra que nem sempre o arrependimento é suficiente para apagar traumas de infância que sempre foram sufocados por expressões comi “isso é uma fase” ou “adolescente faz muito drama por nada”. Aliás, o comportamento dos adultos na série é um reflexo muito grande de como muitos realmente tratam a geração mais nova, sempre diminuindo os traumas e aumentando o sentimento negativo. Pior ainda é a falta de percepção da origem de todos os problemas na vida de todas as partes envolvidas.

Koe no Katachi apresenta Shouko, uma personagem surda que possui uma enorme dificuldade de se adaptar na sociedade e que sofre com julgamentos até mesmo de seus docentes. Que possui uma mãe que tenta a proteger em uma semi-bolha e que mesmo assim tenta se manter firme de forma inacreditável, mas inspiradora. Através de quadros e passagens cheias de ritmo e extremamente bem conduzidas pelo autor, o mangá consegue se sobressair sem apelar para uma carga dramática forçada e imposta ao leitor. Ler é um misto de “soco na cara” e “gratidão” como eu jamais poderia descrever. Uma fluidez que contagia.

Sempre fui um apaixonado por histórias dramáticas, mas Koe no Katachi se mostra muito mais do que isso. É uma obra que pensa em seu público alvo tentando passar uma mensagem para ele: a de que a sociedade tem camadas muito maior do que pensamos, e que os problemas podem vir de todas as direções, das mais diversas formas. Mas ele também pode ter um outro lado: o de que sempre teremos alguém que tentará superar tudo por mais improvável e difícil que pareça sua posição. É provável que se prestarmos um pouco mais de atenção conseguiremos enxergar muitos Shouko e Shouya por aí.

CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS

Há pouco o que se falar de Koe no Katachi, exceto enaltecer todas as qualidades da obra como um quadrinho. A autora, Yoshitoki Oima, tem na série o seu primeiro trabalho como roteirista, já que anteriormente teve a responsabilidade de desenhar os quadrinhos de Mardock Scramble.

Como disse alguns parágrafos acima, a autora enfrentou logo de cara uma resistência pública contra sua obra por criticar a sociedade de uma forma tão direta e em uma revista voltada para um público, literalmente, alvo. Mas isso não a impediu de prosseguir evoluindo mais e mais com o decorrer da série. Se no primeiro volume você percebe uma certa inconstância nos traços, saiba que tudo melhora gradativamente até o final, quando ela atinge seu ápice. Quanto ao seu enquadramento e noção de ritmo na história, ela nos entrega uma arte sequencial incrível, que consegue transmitir todas as sensações necessárias para que você se apaixone pelo mangá. Sensacional.

A editora NewPOP surpreendeu muitos ao se divulgar como a escolhida pela Kodansha em publicar a obra no país. Muitos davam como certo a vinda por JBC e Panini. De qualquer forma, ela não decepciona, apesar de ressalvas que são importantes frisar e aguardar por uma melhora da mesma.

O formato segue o mesmo do japonês, sem sobrecapas, mas com o mesmo tamanho e com um papel offset de 90g. O valor de capa é de R$16,00, a média de nosso mercado atual. Pelo produto gráfico o valor é bem correspondido. O grande problema da editora é ainda precisar de revisores melhores. A edição peca muito no português mesmo se tratando de um mangá que precisava de maior cuidado por se tratar de um hype criado, tanto pela popularidade, como pela produção do filme lançado. Palavras, expressões e muitos erros de pontuação e acentos são tomados pelo volume inteiro. Uma pena. Não temos problemas tão graves quanto em Helter Skelter ou Suicide Club, mas que deixam os mais ligados no idioma com um pé atrás.

Tirando isso, uma impressão excelente, um acabamento bem costurado e uma boa divulgação ajudaram no fortalecimento do mangá, que aparentemente teve uma ótima recepção de público.

CONCLUSÃO

A Voz do Silêncio já é um dos melhores lançamentos do ano. Isso não vai mudar. Apesar da NewPOP ainda precisar de um carinho maior com seus títulos, não é um mangá que eu deixaria de recomendar por esse motivo. Cada página, cada releitura (porque a vontade de fazer é muito grande) e cada experiência vale cada centavo investido na série.

Eu poderia repetir tudo que já disse sobre o quanto A Voz do Silêncio me fez pensar em diversas situações da vida, inclusive em muitas nas quais eu mesmo estive envolvido, mas acho que o questionamento e a forma como o título será absorvido dependerá apenas de você, leitor. Encare esse mangá como muito mais do que apenas uma leitura para passar o tempo. Yoshitoki Oima tem muito mais a lhe oferecer em sua narrativa rica, cheia de recursos para te impressionar, te emocionar e também para te incomodar. Muito.

Esteja pronto pra cada soco no estômago por mais que ache que tudo não passa de um romance simples e de dois estudantes. O mangá é muito maior que isso. Assim como Shouya e Shouko crescem juntos no decorrer da história, você também aprenderá a vivenciar isso de uma forma que só um quadrinho pode fazer. Nota 10. Koe no Katachi é um poema em forma de mangá.


A VOZ DO SILÊNCIO

Autora: Yoshitoki Oima
Editora: Editora NewPOP
Demografia: Shounen (Shounen Magazine)
Total de volumes: 7 volumes
Preço: R$16,00

Nota: ★★★★★

 

Dih

Criador do Chuva de Nanquim. Paulista, 31 anos, editor de mangás e comics no Brasil e fora dele também. Designer gráfico e apaixonado por futebol e NBA.