Review | ‘Minha Experiência Lésbica com a Solidão’: dilemas existenciais disfarçados com humor

Um ponto fora da curva no mercado brasileiro de mangás.

Até onde minha memória vai, não me recordo de mangás autobiográficos publicados no Brasil. E se houveram títulos lançados, não foram muitos. É entendível: o nosso mercado e consumo sempre foi mais voltado para o que é referência e “confortável” ao imaginário ocidental do que tange a animes e mangás. Felizmente, focando no aspecto de pluralidade, percebe-se que as editoras têm apostado em títulos mais diversos nos últimos anos, mesmo que de uma maneira mais tímida.

Injusto não citar a editora NewPOP como uma das mais empenhadas em trazer coisas diferentes para os leitores que vão além do alcance do leitor habitual, trazendo obras que possam sair da bolha otaku e atingir mais pessoas. Com seu formato, título e sinopse que geram desde estranhamento inicial até curiosidade, Minha Experiência Lésbica com a Solidão é um mangás da editora que faz parte do acervo da editora representando uma o “ponto fora da curva” do convencional através de uma história tão pessoal e, assustadoramente, identificável.

A HISTÓRIA

Durante dez anos desde que se formou no colégio, a autora Kabi Nagata viveu dias de sofrimento e se sentindo sufocada. E a solução a que ela chegou para se libertar foi: ser abraçada por uma garota de programa lésbica…! Conheça a história real de Nagata, onde ela mostra o seu processo extremo de autorreflexão até conseguir se encontrar, contada sem censuras!”*

* 𝐒𝐢𝐧𝐨𝐩𝐬𝐞 𝐝𝐚 𝐞𝐝𝐢𝐭𝐨𝐫𝐚

CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS E EDIÇÃO NACIONAL

Pra ser sincero, eu não sabia o esperar desse mangá quando o comprei. Estava em uma promoção relâmpago e não me contive. É daquelas situações em que depois você para e pensa “meu deus, foi a melhor decisão que tomei”. A arte engana. Olha o título da obra! Mas ainda assim a “fofura” do design da personagem na capa te dá uma falsa esperança de que você vai conferir uma história leve e fofinha, quando na verdade estamos entrando na vida e na cabeça da mangaká Kabi Nagata.

São pouco mais de 140 páginas, mas logo você percebe que não é uma leitura convencional. A carga dramática somada ao peso de ser uma história real faz a leitura depender de um tempo maior do que um mangá “comum”. Não é uma história arrastada, mas que precisa ser lida com atenção. Aqui temos uma personagem tendo que lidar sozinha com aquilo que muito de nós evitamos mostrar ao mundo: a complexidade de se tornar adulto. Como a falta de traquejo social e a dependência de laços não suprida nos leva a desenvolver comportamentos disfuncionais com frequência.

Engana-se quem acredita que a questão seja a homossexualidade de Nagata. Perto do emaranhado de questões conflituosas quais tem de lidar isso se torna até trivial, porém não totalmente. Há muito a ser visto por aqui. Desde o retrato de uma pessoa com depressão tendo uma luta constante para consegui se encaixar no que se espera pela sociedade, até a desmistificação dos pais perfeitos, que podem ser tóxicos em suas atitudes e preocupações, e a forte tendência a autossabotagem.

Sem ter suas necessidades afetivas básicas sofridas, a mangaká acaba desenvolvendo comportamentos compensatórios, como a tricotilomania e compulsão alimentar. No auge da ideação suicida, ela percebe que precisa fazer algo. Com o relato de várias situações, o clímax da história se algo pautado em muito mais do que ter sua primeira relação sexual tardiamente. É uma grande autorreflexão de nossas necessidades que são negligenciadas a todo momento.

Durante a leitura, muito pensei acerca que dentro do contexto cultural japonês a a vivência de Kabi Nagata. Nossa visão ocidental tem um certo limite de alcance, pois temos nossa empatia enviesada. Dentro disso, imagino quantas nuances desse “mundo real” retratado e parte de sua complexidade é perdida na leitura de alguém que não compreende de verdade os valores e costumes de um outro povo.

A arte é maravilhosa, toda em preto, branco e rosa. O rosa dá um tom descontraído para os momentos mais pesados que são narrados de forma livre pela mangaká. A editora Newpop, ao menos em comparação com os demais quadrinhos que tenho da editora, deu a esse mangá um formato especial em questão de tamanho (21.4 x 14.6).

São apenas 144 páginas, mas com a complexidade do que se propõe a retratar e o tempo que necessitamos pra digerir faz com que o tempo a ser depositado na leitura seja até maior que um mangá shonen dinâmico de 300 páginas. Com base nisso, vejo o preço de “capa” (R$26,90) como justo diante do produto que está sendo adquirido.

COMENTÁRIOS FINAIS

Eu só posso torcer para que no futuro venha mais obras da autora para o Brasil, e que mais gente conheça esse relato fiel da subjetividade de uma mulher enfrentando diversos monstros, mas não de maneira sobrenatural como muitos leitores estão acostumados: tudo é real. Vai além do deslumbre de ser uma história biográfica e a curiosidade da vida alheia; mesmo em culturas e espaço diferentes, é impossível não se conectar de alguma forma com os dilemas que Nagata tem que enfrentar para poder ser funcional numa sociedade que se cobra mais e mais, de todos os lugares, e que em diversas vezes nos coloca como inimigos de nós mesmos.

É importante ressaltar que embora “Minha Experiência Lésbica com a Solidão” tenha doses de um humor, em sua essência é um drama real e denso, além de apresentar um conteúdo recomendado apenas para pessoas maiores de idade. Também apresenta questões sensíveis acerca de transtornos psicológicos e conteúdo maduro, então não é uma leitura para qualquer estado de espírito. No mais, a qualidade é inquestionável e merece sua atenção, caso não o tenha lido.


MINHA EXPERIÊNCIA LÉSBICA COM A SOLIDÃO
(さびしすぎてレズ風俗に行きましたレポ)
História & Arte: Kabi Nagata
Editora: NewPOP
Gênero: drama / humor autobiográfico
Total de volumes: 1 volume
Preço de capa: R$ 26,90



Pontos Positivos

  • Conexão que atravessa as barreiras culturais ao lidar com assuntos delicados;
  • Arte com estilo único e convidativo, contrabalanceando os temas abordados;
  • Material atípico em nosso mercado por um preço acessível.

Pontos Negativos

Não é bem um ponto negativo, mas sim um desejo: existem mais três continuações em que a autora continua narrando suas experiências e desafios, e não há nada de anúncio por aqui. Então caso tenha se interessado após ler a nossa resenha, vamos de adquirir “Minha Experiência Lésbica com a Solidão” para apoiar a publicação e quem sabe um dia ter em mãos as outras edições.

Nota: ★★★★★

Val

Otaku, cinéfilo, marvete e várias outras classificações aí do mundo geek! Ah, e psicólogo.