Zaregoto – Inaka Isha: Notas sobre Franz Kafka e Koji Yamamura

zaregotoheaderNova coluna e novo redator no Chuva de Nanquim.

Nota do Editor: É com muito prazer que a partir de hoje o amigo Alexandre, popularmente conhecido como ‘Noots’, faz parte da equipe do Chuva de Nanquim. Ex-redator do Subete Animes, Noots aumentará ainda mais o repertório cultural de nosso site com seus textos recheados de cultura que passam de algo muito maior do que apenas “curiosidades”. Espero que curtam seus textos com tanto prazer como merecem.

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ADAPTANDO KAFKA:

A tradução do indizível 

“O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser trilhada”. – KAFKA, Franz

Esse famoso aforismo de Franz Kafka (1883 — 1924), postumamente reconhecido como um dos gigantes da literatura mundial do século XX, usualmente colocado ao lado de Joyce e Proust na condição de maior escritor do século, foi escolhido para abrir o curta-metragem Inaka Isha (título japonês do conto Ein Landarzt, em português, Um Médico Rural, embrião de uma coletânea de breve narrativas homônima, uma das poucas publicações de sua obra que o autor tcheco viu em vida, lançada em 1919), de 2007, galardoado mundo afora em eventos como o Festival Internacional de Animação Ottawa e o Mainichi Film Award.  O que levou o proeminente animador independente Koji Yamamura a iniciar seu até então mais ambicioso trabalho com essa sentença é um mistério. Talvez a frase imprima toda a verdade sobre o “realismo problemático”, como diz Modesto Carone, do escritor, ou talvez sintetize o “absurdo”, como quis Albert Camus, que define o universo kafkiano. Talvez. Mas, como em tantos outros episódios atrelados a Kafka e a seu legado, não há quem saiba ao certo.

Em contrapartida, é sabido que transportar o texto de Kafka para o audiovisual é uma tarefa dificílima, na qual apenas os mais talentosos atingem o sucesso. Dezenas de adaptação cinematográficas, entre curtas e longas-metragens, foram realizadas ao decorrer dos anos, porém somente uma fração ínfima desse montante merece ser resgatada. No meu entender, isso se deve ao fato de que para adaptar Kafka não basta entende-lo, é preciso interpretá-lo – apoderar-se de suas ideias e imergi-las no oceano onírico particular, criando um trabalho pessoal. Para transliterar o Poeta de Praga, a exegese de seu texto deve ser seguida pela elaboração de algo novo.

Mas como seria possível adaptar Kafka? Como trazer para fora dos livros sua perturbadora maestria descritiva, que em alguns poucos parágrafos – sempre fazendo uso de um vocabulário premeditadamente limitado, propositalmente escasso, que gira em torno de uma soma de aproximadamente 300 palavras – de O Desaparecido transforma uma mansão em construção em um sombrio labirinto? Como transcrever de forma coerente para as telas o massacrante diálogo de K. na casa de Barnabás, que, sozinho, ocupa quase ¼ de O Castelo? Conhecer alguns precedentes pode nos ajudar a responder tais perguntas, assim como auxiliar-nos na tarefa de compreender a investida de Yamamura por esse caminho tortuoso.

Anthony Perkins como Joseph K. em O Processo, de Orson Welles
Anthony Perkins (centro) como Joseph K. em O Processo, de Orson Welles.

O revolucionário Orson Welles, por exemplo, venceu tal desafio em O Processo (1962), no qual, apesar do respeito quase reverencial mostrado durante os dois primeiros atos do filme, ousou mudar drasticamente o “final” (trata-se oficialmente de uma obra inacabada, ainda que a história tenha um desfecho) da saga de Joseph K. Iniciar o filme narrando na integra a parábola Diante da Lei (também publicada originalmente na coletânea Um Médico Rural, embora apareça no 9º capítulo do romance em questão), dando ao espectador a dimensão primeira da perversa burocracia que assolará o protagonista, chegando aos extremos da compreensão no monumental diálogo do herói com o sacerdote, no penúltimo capítulo da obra, ou acentuar a estranheza das situações usando como trilha sonora frenéticos arranjos de um jazz bebop que Kafka jamais sonhou em conhecer, entre outros toques pessoais fazem dessa uma realização repleta de personalidade, um verdadeiro trabalho de Orson Welles, que ultrapassa a mera homenagem.

Em diferente escala, o cineasta austríaco Michael Haneke, que recentemente faturou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com Amor (2012), também foi feliz em sua adaptação quase literal de outro romance jamais terminado, O Castelo (1997), em que manteve trechos inteiros da narrativa em terceira pessoa do autor, deixando também intacta a abrupta interrupção da jornada do agrimensor K. , encerrando o longa com o dilacerante aviso “aqui termina o manuscrito original.”, evidenciando que o diretor não irá nem um passo além.  Mas nem mesmo essa pragmática fidelidade impediu que Haneke deixasse sua assinatura no projeto por meio de seus características trejeitos de direção, seus já famosos enquadramentos fechados e plano-sequências, que conferem a narrativa uma monotonia não encontrada na “dura, seca e despojada prosa kafkiana”, nas palavras de Marcelo Backes.

Animação de Piotr Dumała sobre o Poeta de Praga
Animação de Piotr Dumała sobre o Poeta de Praga.

É ainda importante frisar que Inaka Isha não foi a primeira, e, espero, não será a última animação a fixar os pés no solo irregular dessa terra dos sonhos sombrios. Em 1992, o polonês Piotr Dumała entregou ao mundo Franz Kafka, um assombroso curta que, em seus 16 minutos, dá nova luz (ou sombra) ao grotesco legado do escritor. Utilizando sua singular animação destrutiva, técnica que consiste em pintar por cima de cada imagem a fim de criar o quadro seguinte, o cineasta reuniu, sem trama que os amarrasse, recortes de obras de Kafka, como a transformação de Gregor Samsa, de A Metamorfose, em repugnante (e aqui o termo soa ameno) inseto, ou a sedução que levaria ao exilio e à ruína Karl Rossmann, o decadente herói de O Desaparecido ou Amerika, e momentos da vida do próprio autor, como os desconfortáveis jantares referidos na poderosa Carta ao Pai. Ao mergulhar na realização da ode ao fabulador por cujo pensamento mais foi influenciado, Dumała emergiu com sua magnum opus.

Esses três aclamados cineastas – isso para não adentrar o âmbito de outras adaptações, como, por exemplo, a ótima transposição para quadrinhos de Na Colônia Penal feita por Sylvain Ricard e Maël – puseram seus talentos à prova frente a prosa kafkiana e, como poucos outros, obtiveram êxito. Neste texto, busco demonstrar que, com Inaka Isha, Koji Yamamura se juntou a esse seleto grupo.

Sobre a arte, ou melhor, independência de Koji Yamamura

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“Nossa arte consiste em ser ofuscado pela verdade: a luz sobre o rosto horrível que vai recuando é verdadeira, de resto nada.” – KAFKA, Franz

Contrariando a mentalidade nacionalista geralmente atribuída ao povo e em especial aos artistas japoneses, toda a criação de Koji Yamamura se origina e acaba por se voltar para fora da ilha. Suas principais influências enquanto criador de histórias são pintores, escritores e inventores europeus, ao passo que suas animações se inspiram no auspicioso legado dos mestres do National Film Board of Canada (NFB), que, revelando e dando apoio às experimentações de cineastas como Norman McLaren (Begone Dull Care; Neighbours) e Caroline Leaf (The Street; Two Sisters) praticamente fundamentou o que hoje conhecemos como animação artística.

Animação artística é um termo que, aliás, não é apreciado por Yamamura; em entrevista ao British Film Institute (BFI), quando questionado sobre sua atribuição, ele foi categórico: “Eu não gosto [do termo]. É difícil definir o que é ‘arte’. Todo filme tem, de alguma forma, alguns aspectos artísticos. Eu prefiro o termo ‘animador independente’”. E a independência parece ser de fato a característica primeira de sua trajetória: fugindo por completo da estética do anime, que é para o mundo expressão suprema da animação japonesa, esse realizador solitário trata de temas do além-mar. É como se levasse ao pé da letra outro aforismo kafkiano, que sugere: “Na luta entre você e o mundo, apoie o mundo”.

Mas a primeira fagulha de inspiração artística de Koji Yamamura, nascido em 4 de junho de 1964, em Nagoya, não divergiu muito daquela que continua a inflamar diariamente os corações de milhares de jovens, nipônicos ou não: ele queria ser um mangaká. É irônico que tenha sido o anseio de aprimorar constantemente suas ilustrações que o levou a explorar as artes gráficas mais a fundo, descobrindo e imitando outras formas de desenho, culminando em seu distanciamento da estética quadrinhesca e aproximação da pintura clássica. Já na fase acadêmica, estudando na Tokyo Zokei University, deu ênfase a prática de pintura a óleo e entrou em contanto com os trabalhos de pintores e animadores que o marcariam para sempre (principalmente os que conheceu no Pimeiro Festival Internacional de Animação de Hiroshima, realizado em 1985) .

Afterlife, de Ishu Patel, uma das principais influências do primeiro curta de Yamamura
Afterlife, de Ishu Patel, uma das principais influências do primeiro curta de Yamamura.

Como resultado desses quatro anos de aprendizado, o jovem que outrora sonhou desenhar mangás entregou Suisei (1987), um trabalho de graduação que, embora experimental, já denotava o caráter cosmopolita de sua obra. As principais influências desse curta de pouco mais de cinco minutos são a pintura Three Worlds, do holandês Maurits Cornelis Escher, e a animação Afterlife (1978), de Ishu Patel, um dos principais nomes do NFB a partir da década de 70. Eis então, já em seu primeiro lançamento, a reverência ao legado artístico europeu e ao estilo de animação financiado pelo Canadá que até hoje o acompanham.

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Aplicação de pintura a óleo, técnica na qual o artista focou seus estudos, em Suisei, seu trabalho de graduação.

Aplicação de pintura a óleo, técnica na qual o artista focou seus estudos, em Suisei, seu trabalho de graduação.

Fazendo animações comerciais, como uma série de curtas infantis para a NHK, ou ilustrando livros também voltados para crianças a fim de se sustentar durante toda a década de 90, Yamamura só conseguiu se voltar por inteiro para seu verdadeiro campo de interesse, o da animação independente, após o sucesso de crítica Atamayama (2002), indicada ao Óscar de melhor curta-metragem de animação no ano seguinte – mesmo ano em que Sen to Chihiro no Kamikakushi saiu vencedor da categoria principal. Esse foi o primeiro grande tiro da Yamamura Animation, companhia fundada pelo cineasta em 1993, que tem como única colaboradora sua esposa, Sanae Yamamura, uma artística plástica especializada em pintura abstrata, a qual conheceu ainda na faculdade, e que, embora não seja ilustradora ou animadora, é, em suas palavras, uma artista muitíssimo superior a ele próprio.

atamayamaBaseado em uma tradicional história rakugo – a partir desse trabalho, aspectos da cultura de seu país serão inseridos com maior frequência na obra do idealizador, contudo suas principais referências continuem a fugir do cotidiano japonês –, essa anedota sobre o egoísmo, na qual Yamamura trabalhou durante seis anos, passa em sua animação estilizada, trabalhada em diversas camadas de colorização, um surrealismo cômico que, vale dizer, muito se assemelha ao estilo de Kafka em alguns de seus divertidos, porém ainda desconcertantes contos, como Um Cruzamento e Blumfeld, um Solteirão de Meia-Idade. Nesse ponto, o reconhecimento internacional foi ganho; já o Oscar, perdido para The ChubbChubbs!, do Sony Pictures Imageworks. Contudo, não são poucos os que afirmam ter sido essa inesperada indicação de um artista japonês até então desconhecido o que pavimentou o caminho para a vitória de La Maison en Petits Cubes, de Kunio Kato (Aru Tabibito no Nikki), no último ano daquela década.

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Efeito das diferentes camadas de colorização usadas pelo animador em Atamayama.

Efeito das diferentes camadas de colorização usadas pelo animador em Atamayama.

Seu projeto seguinte, Toshi wo totta Wani (2005), adapta, com um character design simplista e com um jogo de cores baseado no contraste entre o preto e o pastel, Histoire du Vieux Crocodile, narrativa infantil escrita e, em sua segunda edição, ilustrada por Léopold Chauveau, um hoje esquecido fabulador francês. Tentando passar em seu traço o carisma algo perturbador das gravuras de livros para crianças – tentem se lembrar do memorável trabalho de John Tenniel ao lado de Lewis Carroll –, Yamamura explora outras dimensões da arte da animação, sempre se reinventando.

O quase monocromático Toshi wo totta wan, cuja proposta é a supremacia da simplicidade estética.

O quase monocromático Toshi wo totta wan, cuja proposta é a supremacia da simplicidade estética.

Outra observação pertinente: o cineasta não se entrega somente ao caráter estético da animação em suas criações; enquanto diretor independente, que carrega sozinho o peso de cada projeto, Yamamura é responsável por todo e cada elemento de seus curtas. Um exemplo de seu detalhismo para além do visual é o magistral Muybridge’s Strings (2011), no qual o artista realizou o sonho de colaborar com o NFB na missão de retratar o mais abstrato temas: o tempo. Intercalando, sem nenhuma forma de ligação, momentos da vida de Eadweard Muybridge, um dos muitos colaboradores desconexos que levaram a criação e estabelecimento do cinema, e o crescimento de uma criança, acompanhado com certo pesar pela mãe desta, Yamamura encaixa, em comunhão com variados estilos de desenho, seu próprio conceito de (a)temporalidade através da música. Colaborando com o brilhante compositor Normand Roger, o diretor resgatou para ambientar sonoramente sua criação a Crab Canon de Johann Sebastian Bach, que consiste em um palíndromo musical, ou seja, uma composição que pode ser tocada de trás para frente sem que sua estrutura seja alterada – característica que compactua com a noção de atemporalidade defendida na animação.

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Do lápis à esponja: os diferentes estilos de ilustração de Muybridge's Strings.

Do lápis ao giz de cera: os diferentes estilos de ilustração de Muybridge’s Strings.

Porém, entre Toshi wo totta Wani e Muybridge’s Strings houve um outro projeto. O mais ambicioso e, a meu ver, o melhor da carreira de Koji Yamamura, sobre o qual, após conhecermos panoramicamente o trabalho do artista, podemos enfim discorrer.

Enfim, o chamado noturno

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“Não me compreende mal – disse o sacerdote –, eu apenas estou te mostrando as opiniões que existem acerca de tudo isso. Não deve dar demasiada atenção a opiniões. O texto é imutável, e as opiniões são muitas vezes apenas a expressão do desespero acerca disso.” – KAFKA, Franz – O Processo

Um Médico Rural é um evento com poucos precedentes na trajetória de Kafka, por ser considerado essencialmente um trabalho surrealista. Narrada em primeira pessoa por um médico do campo que precisa visitar um paciente no meio da noite, mas que não possui cavalos que o transportem até seu destino, a história apresenta uma série de inexplicáveis eventos, como a aparição de grosseiro e misterioso indivíduo que oferece ao doutor dois cavalos, a condição sobrenatural dessas bestas, que correm a uma velocidade alucinante e que se dirigem ao local sem serem guiadas, além de uma sucessão de enigmáticas atitudes que se desenrola na casa do paciente. Mas nada disso é surpreendente em se tratando de Kafka, certo? Seria, portanto, toda a obra do tcheco surrealista? Pelo contrário, os grandes intérpretes do autor, de Walter Benjamin a Theodor Adorno, o consideram um fabulador realista, sendo a falta de explicação para estranhos ocorridos uma das principais marcas desse seu estilo. Entretanto não é a estranheza dos eventos, e sim a casualidade com que os envolvidos os aceitam que caracteriza a escrita kafkiana. Como apontou Günther Anders no excepcional Kafka – Pró e Contra: “O espantoso em Kafka é que o espantoso não espanta ninguém (…) Em Kafka, o inquietante não são os objetos nem as ocorrências como tais, mas o fato de que seus personagens reagem a eles descontraidamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos normais”.

 Em Um Médico Rural essa observação também se verifica; o grotesco é tratado com trivialidade. Então o que o diferencia de outros escritos do autor? Em suma, o fato de que não há uma estrutura, ainda que implícita, que justifique esses desconcertantes acontecimentos. Em seus três romances, assim como na predominância de seus registros, o absurdo é pautado por uma lógica distorcida, geralmente alinhada a uma complexa estrutura burocrática, que seus protagonistas jamais entendem, mas que aceitam plenamente. Assim, quando o pai-tribunal de O Veredito branda: “Por isso saiba agora: eu o condeno à morte por afogamento!”, é como se o poder imanente a essa ordem não pudesse ser refutado, conduzindo Georg a seu trágico fim; do mesmo modo, quando um dos inquisidores de Joseph K., de O Processo, lhe diz que “o senhor deveria ter aparecido há uma hora e cinco minutos”, ainda que nenhum horário jamais tenha sido estabelecido para nenhuma das audiências que se sucedem durante o romance, é como se K. não só devesse, mas também soubesse que devesse. É essa estrutura lógica de culpa, que se encontra presente em textos tão diferentes quanto A Construção e Um Fratricídio, o que falta a Um Médico Rural, onde os inexplicáveis ocorridos são como são, sem nada por trás deles, ou seja, puramente surreais, tornando-o um conto singular na bibliografia de Kafka.

Distorção visual e abandono da proporcionalidade em Inaka Isha.
Distorção visual e abandono da proporcionalidade em Inaka Isha.

Se apropriando dessa singularidade, Koji Yamamura, colaborando com o grande estúdio Shochiku, interpretou de maneira também única a curta narrativa. Segundo o diretor, a loucura do protagonista é o ponto de fuga do curta; o japonês vê no descontente doutor um mentiroso inveterado, que, mesmo em um monólogo, oculta e distorce os eventos, estando, assim, mentindo não só para o leitor, mas também para si mesmo. A fim de apresentar em imagens as abruptas mudanças de ideia e a constante incerteza passadas pelo narrador, Yamamura usou de um sofisticado estilo de distorção visual, que a todo o momento, ao longo dos mais de 15 mil frames que compõem o filme, rompe a proporcionalidade e a lógica de suas belas ilustrações, resultando em um inevitável estranhamento.

Mas, vale lembrar, a excelência visual não é o único mérito do artista.  Se em Muybridge’s Strings a escolha da trilha sonora foi de caráter vital, aqui o processo de vocalização se mostrou tão importante quanto o ato de desenhar. As vozes emprestadas para a obra pertencem a membros de uma companhia de teatro kyogen, sendo a principal performance de um dos maiores expoentes dessa arte e chefe do grupo, Shigeyama Sensaku. Desenvolvido em paralelo com o noh, o kyogen é uma forma de teatro cômico surgida há mais de 800 anos, e escolhida por Yamamura em razão de uma de suas singularidades: a presença de personagens periféricos à sombra do ator principal, geralmente vestidos de preto, a fornecer canções e narrações a respeito da história que se conta.

A revelação imediata da proposta: o doutor e suas "sombras" num dos primeiros frames da animação.
A revelação imediata da proposta: o doutor e suas “sombras” num dos primeiros frames da animação.

Yamamura optou por essa estranha caracterização sonora pois, em sua interpretação do conto, “o monólogo do doutor se divide em coisas que ele efetivamente diz para outras pessoas, coisas que ele diz para si mesmo e coisas que provavelmente ocorrem apenas em sua cabeça. E, assistindo kyogen, tive a ideia de usar personagens distintos, que, contudo, continuam sendo o mesmo doutor, dizendo diferentes frases tiradas do monólogo do protagonista.”.

Essas “sombras” se apresentam desde a primeira visão que temos do protagonista, e seu propósito, mesclando o aspecto visual ao sonoro, é retratar a esquizofrenia do inominado doutor. Algumas falas são expressamente ditas pelo médico, ao passo que tantas outras são ditas por esses coadjuvantes metafísicos (percebam que não se tratam de personagens em si, mas tão somente de representações visuais da insanidade do personagem central), acentuando a cada frase o descolamento kafkiano que nos vinte minutos dessa animação são traduzidos com maestria.

inakaisha2Mesclando sua leitura pessoal da obra de Franz Kafka, sua inventividade no campo da animação e ainda um tradicional elemento da cultura de seu país, esse jovem independente, assim como os respeitáveis nomes listados no início do texto, adaptou o inadaptável, em um projeto que, além de angariar prêmios ao redor do globo, o consolidou como um dos grandes animadores da atualidade. Colocando-o sob pressão, com um prazo de apenas 15 meses (cerca de 1/5 do tempo dedicado a Atamayama), Inaka Isha foi o derradeiro chamado noturno da carreira de Koji Yamamura. E, como pontua a doutor na última linha de sua desventura, “depois que se acorre ao chamado noturno já não há remédio. Nunca mais”.

por Alexandre, o @Noots_

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