Homossexualidade e o preconceito velado.
Uma das coisas que mais me atraem na narrativa oriental é como eles conseguem te colocar totalmente imerso em um universo próprio com poucas palavras e imagens. A grande maioria é em uma realidade totalmente fantástica com pessoas que voam e soltam energia pelas mãos, mas sinceramente sou apaixonado por aqueles que são bem mais ‘pé no chão’. Encontrei Otouto no Otto totalmente por acaso; era apenas um lançamento que tinha só 11 capitulos lançados e resolvi ler só para passar o tempo. Acho que foi uma das melhores decisões que já tomei. Hoje, a obra será publicada nos Estados Unidos pela Pantheon Books, a mesma que apresentou para o mundo quadrinhos fantásticos como Persepolis e Maus, e promete ser uma das grandes atrações do mercado norte-americano.
A história
Há dez anos o irmão gêmeo de Yaichi acabou se mudando para o Canadá e se casou com um homem chamado Mike, os dois não conversavam tanto e a viagem ao exterior só ajudou a quebrar totalmente o relacionamento entre os irmãos, tanto que sua filha nem ao menos sabia que tinha um tio. Um mês atrás Yaichi recebe a noticia que seu irmão morreu e pouco tempo depois seu cunhado resolve viajar ao Japão para conhecer a família de seu noivo e os lugares que o seu falecido marido falava tanto. O problema é que essa situação não é tão confortável para Yaichi, que agora começa a conhecer um lado do seu irmão que ele não queria saber enquanto precisa confrontar todos os seus preconceitos em relação a homossexualidade.
Considerações Técnicas
Otouto no Oto é a primeira obra do mangaka Tagame Gengorou em revistas mainstream para homens – antes ele se resumia a histórias adultas para revistas voltadas ao publico gay masculino e revistas BLs – e foi lançada em Setembro de 2014 na Monthly Action. Em uma entrevista o autor explica que ele queria falar para o publico hétero sobre os problemas enfrentados pelos gays nos dias de hoje. Também foi perguntado se os leitores de fora do Japão conseguiriam se relacionar com a história e ele disse que esperava que sim. Bom… esse leitor brasileiro foi atingido em cheio pela história que o autor quis passar, ainda mais porque eu me vi muito na figura do protagonista Yaichi.
Eu tinha e tenho meus preconceitos, cresci em um ambiente que fazer piadinhas sobre gays era normal: a minha família fazia, meus amigos faziam e até mesmo a televisão era repleta desse tipo de humor, alguém se lembra daquele quadro do Zorra que o pai de um homossexual olhava para a câmera e dizia: “Aonde foi que eu errei?”. Então não é surpresa que a minha visão de mundo era bem pequena, até o momento que um amigo meu revelou a sua sexualidade e comecei entender um pouco sobre o que ele passava. Imaginem então quando comecei a frequentar a internet. Muita das coisas que eu falava e pensava vinham de uma total falta de informação e convívio, com o passar dos anos eu tenho melhorado nesse aspecto, mas ainda falta muito.
Yaichi possui muito preconceito em relação a Mike, mas muito disso vem da falta de conhecimento e contato com alguém que poderia falar sobre o assunto. Não que ele não seja parcialmente culpado, já que ele inconscientemente preferiu evitar o irmão após ele revelar que gostava de homens. O autor nos mostra todo o preconceito velado do personagem com quadros onde temos seu pensamento com uma cena imaginada e outra com o que ele realmente falou; muitas dessas cenas são bem fortes e ofensivas e vão de encontro com a experiência de alguns leitores que já pensaram daquela maneira. Enquanto com o irmão ele conseguiu evitar ao máximo o assunto, com Mike ele é obrigado a encará-los de frente graças a sua filha Kana, que faz as perguntas que ele não tem coragem de dizer e também demonstra uma opinião que não foi afetada pelos conceitos dos adultos. Mike é um personagem que você gosta logo de cara, mas que também percebe o quanto ele está se esforçando ao máximo para não ofender o cunhado e sempre possuir um sorriso no rosto; apesar do luto em relação ao marido ainda estar muito presente e que faz acabar desabando em alguns momentos de fraqueza.
Com esses três personagens o autor tem a base para explorar bastante o universo que muito heterossexual não sabe que existe, indo de notas sobre fatos importantes sobre homossexualidade no começo do capítulo, como também em cenas que são tão reais que me incomodaram demais. Uma das mais marcantes foi sobre um rapaz, irmão de uma amiga da Kana, que vê em Mike finalmente alguém para conversar sobre a sua situação, falar sobre seus medos e desabafar tudo que estava guardado, como por exemplo, sobre ser difícil apenas fingir que achava bonitinhas as modelos de revista. Todo esse capítulo me atingiu em cheio, me fazendo lembrar aquele meu amigo que resolveu revelar para mim o seu segredo mais intimo. Só consegui imaginar o medo que ele provavelmente sentiu da minha reação e se eu acabaria espalhando aquele segredo.
Chega a ser engraçado como tudo que o Tagame revela a cada capítulo pareça tão real para mim, indo do preconceito quase onipresente do protagonista até como Kana é curiosa e bem inocente em relação a tudo o que Mike trás de novo. Essa realidade também se faz presente no traço do mangá, os cenários são muito bem detalhados e os personagens parecem pessoas de verdade, nada muito exagerado como personagens bishounens inacreditáveis, mas que na verdade são apenas estudantes comuns.
Comentários Gerais
Otouto no Otto me conquistou com apenas 15 capítulos lidos. Não precisei de mais que um volume para poder constatar que tinha algo de especial e diferente naquela história. O autor (que você pode conferir uma entrevista do mesmo clicando AQUI) tinha um objetivo de mostrar experiências que a maioria dos leitores héteros de uma revista mainstream não conheciam e eu acho que ele realmente atingiu esse objetivo em cheio, ainda mais por identificar o meu eu de anos atrás em muitos dos pensamentos cheios de preconceito do protagonista.
Lendo o mangá percebi muita das coisas que eu ainda erro, entendi o quanto posso machucar outras pessoas e que eu ainda tenho um longo caminho para percorrer. Também me fez lembrar o quanto eu amo consumir esse tipo de entretenimento e o quanto ele pode me ensinar através de letras e imagens. O mangá ainda está saindo no Japão, sairá nos Estados Unidos, como dito na introdução, e fica aquela duvida: será que um dia ele teria chance de chegar aqui no Brasil?